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terça-feira, 10 de maio de 2011

RACIONALISMO CARTESIANO

O ceticismo do Renascimento, representado aqui por nós na figura de M. Montaigne, fundamentou e deixou claro a decadência da razão. Aliás, na história da filosofia são sucessivos os momentos de ascenção, apogeu e consequentemente decadência da razão. A filosofia é por excelência, um estudo dos movimentos de ascenção, apogeu e decadência da razão humana.

A razão aparece como a faculdade mais precisa do homem. Sua origem, sua evolução e seu destino enfim, sua sobrevivência estão ligados íntimamente a ela. Esse zelo pela razão será a pedra de toque do racionalismo que iniciou seu programa com a figura de Descartes.

No renascimento a razão era descrita como sendo responsável ou melhor, como a faculdade humana responsável pela descoberta e manifestação da ordem divina do mundo. Para Descartes, entretanto, como sendo um dos primeiros racionalistas a apresentar o seu programa, a razão era responsável pela produção e estabelecimento da ordem dos conhecimentos e das ações dos homens. Portanto, em Descartes, a razão é uma faculdade humana e não divina. Deus não interfere na razão, pois esta, em grande parte, depende exclusivamente, de REGRAS.

Ai está pois, a diferença principal entre Descartes e o pensamento renascentista. Veremos, no entanto, que as sequêlas da filosofia renascentista aparecem vivamente na filosofia racionalista de Descartes. Essa parte de nosso estudo constará de duas etapas. A primeira enfocará a concepção cientiífica de Descartes; a segunda objetivará explicitar a concepção metafisica de Descartes.

1.1.1 Descartes e a ciência

O conceito dominante não só no racionalismo mas também em Descartes é o conceito de SUBSTÂNCIA. Mas por que o conceito de substância advindo de Aristóteles colocou-se como o centro do programa racionalista do séc XVI? Ora, assim como Aristóteles distingue em sua lógica o Sujeito do Predicado, o mesmo ele efetua em sua metafísica diferenciando Substância de Atributo.

Neste sentido, quando pronunciamos a seguinte sentença: "Pedro é um homem", temos que "Pedro" será o sujeito da sentença e, o restante "um homem" será o predicado. Ora, enfocando esta mesma sentença teremos que o termo "Pedro" é a Substância, a essência, e o complemento "um homem" é o seu atributo. Sendo assim, a substância possui e é uma essência, e os seus atributos são acidentes, isto é, propriedades com relação às quais a substância pode mudar sem deixar de existir. A essência é justamente a parte da substância que não muda e não deixa de existir. Em uma palavra a substância em essência é o que permanece.

Este conceito de Substância assume importância vital porque essa contém em si a explicação total ou completa da natureza. A dificuldade residirá em que a IDÉIA DE MATÉRIA dificilmente se enquadrará na estrutura conceitual de SUBSTÂNCIA, em Aristóteles. Estabelecer essa relação entre a idéia de MATÉRIA e o conceito de substância, se é possível ou não, será o centro de polêmicas no racionalismo moderno e, principalmente em Descartes.

Diz Descartes: "Pois, com efeito, aquelas que me representam SUBSTÂNCIAS são, sem dúvida, algo mais e contém em si (por assim falar) mais realidade objetiva, isto é, participam, por representação, num maior número de graus de ser ou de perfeição do que aquelas que representam apenas modos ou acidentes" (Meditações, 103)

Como Descartes opera para estabelecer ou restabelecer a relação entre a IDÉIA de MATÉRIA e a de Substância? Descartes estabelece uma diferença entre Substância pensante e Substância extensa:

"Pois, quando penso que a pedra é uma substância, ou uma coisa que é por si capaz de existir, e em seguida que sou uma substância, embora eu conceba de fato que sou UMA COISA PENSANTE E NÃO EXTENSA, e que a pedra, ao contrário, é UMA COISA EXTENSA E NÃO PENSANTE, e que assim, entre essas duas concepções há uma notável diferença, elas parecem, todavia, concordar na medida em que representam substâncias." (Meditações, 107)

Ora, enquanto que a substância pensante aqui em nosso estudo será melhor explicitada na segunda parte que trata da METAFÍSICA, a substância extensa será tratada neste momento. A razão disso é que a extensão é a categoria fundamental, em Descartes, para entender-se a concepção de UNIVERSO.

A filosofia de Descartes se compõem, básicamente, de três momentos: 1º O da dúvida metódica (que corresponderia a 1ª e 2ª MEDITAÇÃOES); 2º O da inserção do cógito (que corresponderia a 2ª e 3ª MEDITAÇÕES); e 3º O da saída do cógito (que corresponde a 3ª,4ª,5ª e 6ª MEDITAÇÕES). Portanto, o cerne da filosofia cartesiana é a dificuldade que há em sair-se do cógito para admitir que existe algo fora dele, isto é, se há uma realidade exterior ao cógito.

Descrever a concepção de Universo (ou de ciência) em Descartes é justamente deter-se neste terceiro momento, que pode ser sintetizado neste esquema:

IDÉIA »»»»»»»»»»»»»»»»» OBJETO

Isto é, como ocorre a passagem de uma idéia localizada no interior do cógito para um objeto localizado fora do cógito? Em termos Cartesianos:

SUBSTÂNCIA PENSANTE »»»»»»»»»»»»»»»» SUBSTÂNCIA EXTENSA

Isto é, como ocorre a passagem de substância pensante para a substância extensa? Como Descartes reconhece a existência do mundo exterior? Vejamos em Descartes:

"Tomemos, por exemplo, este PEDAÇO DE CERA que acaba de ser tirado da colmeia (...) todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo encontram-se neste (...) Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo (...) A mesma cera permanece após essa modificação? Cumpre confessar que permanece : e ninguém o pode negar, (...) Consideramo-lo atentamente e, afastando todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos O QUE RESTA. Certamente, nada permanece SENÃO ALGO DE EXTENSO, flexível e mutável (...) E agora, que é essa extensão? (...)" (Meditações, 96)

Ora, chegamos a idéia de extensão por intuição da mente. Mas, o que significa extensão? Extensão, em Descartes, significa "SER CHEIO DE MATÉRIA". Portanto, é uma contradição sustentar a extensão como algo desprovido de toda matéria. A matéria possui extensão e movimento. E a razão concebe a extensão pelo método geométrico.

Aqui que começa-se a explicar a passagem que vai do interior do cógito para o seu exterior. Isso ocorre graças ao método geométrico de Descartes. Ora, se eu me constituo como uma substância finita, como posso ter a idéia de um ser infinito em mim? Logo, esse ser infinito está fora de mim. Diz neste sentido Descartes:

"Portanto, resta tão somente a idéia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que não possa ter provindo de mim mesmo? Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável (...)

(...) ainda que a idéia de substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser eu uma substância, EU NÃO TERIA, todavia, a IDÉIA DE UMA SUBSTÂNCIA INFINITA, EU QUE SOU UM SER FINITO, se ela não tivesse sido colocada em mimpor alguma substância que fosse verdadeiramente infinita" (Meditações,107-8)

O infinito não pode estar contido no finito, mas o finito (homem) pode estar contido no infinito (Deus). Logo, o infinito está fora do finito, existe fora do finito. Deve haver uma realidade exterior ao cógito.

O Universo físico será um mecanismo criado por Deus, que pode ser reduzido ao cálculo. O Universo é um relógio preciso. A precisão desse relógio se explica pelo movimento das partes extensas. Esse princípio, e assim acreditou Descartes, explica todos os fenômenos da natureza. Deus é a causa primeira desse mecanismo e as leis da física dele são deduzidas.

Neste sentido, temos em Descartes a primeira lei da natureza: O PRINCÍPIO DE INÉRCIA. O que significa este princípio? Todas as coisas, que compõem a realidade exterior do cógito, enquanto simples e indivisas preservam-se sempre no mesmo estado e não se alteram, não mudam a não ser que uma causa externa os ponha em movimento. A segunda lei: todas as coisas tendem a movimentar-se em linha reta. E a terceira lei, conhecida como a lei ou o princípio da conservação do movimento, diz que no choque de dois corpos entre si, o movimento não se perde, mantendo-se a sua quantidade constante.

Destas leis é que Descartes deduz toda estrutura do Universo e aponta para o fato de que todos os fenômenos desse Universo, dessa natureza possam, por essas leis, serem REDUZIDOS.

Neste sentido, o Universo atual, a ordem atual do mundo se formou a partir do caos. "A matéria primitiva era composta de particulas iguais em grandeza e em movimento; estas particulas moviam-se quer, em torno do próprio centro quer uma em relação as outras, de modo a formarem turbilhões fluidos que, compondo-se de modos vários entre si, deram origem ao sistema e depois à terra". (HF,59-60)

Esse Universo mecânico, esse Universo máquina transfere esssasua característica aos seus componentes. Dessa forma, Descartes, fala de um mecanismo não só para o Universo mas também para aquilo que nele está contido: Homens, Plantas e Animais. A comprovação de Descartes que o homem é uma máquina dentro da grande mecânica do Universo, está no circulação do sangue. Mas a descrição de Descartes a respeito da circulação do sangue não parece concordar muito com a de Harvey - descobridor do trajeto da corrente sanguinea. Enquanto que Descartes atribui à circulação sanguinea, em causa, a maior quantidade de calor que existe no coração, Harvey (1628) indicava como sua causa a contração e distenção do músculo cardíaco.

Cabe por último salientar que, toda matéria existente no Universo, na concepção Cartesiana, foi posta em movimento uma vez por todas, ao mesmo tempo e, o papel de Deus é que esse movimento seja perpétuamente conservado.

Em conclusão, dir-se-ia que Descartes "queria alcançar uma concepção de mundo que fosse, num sentido totalmente específico, objetiva, isto é, quera mostrar que, independentemente de seus pensamentos e percepções, existe um mundo que poderia, a qualquer momento, diferir do que parece ser para ele, do qual ele fosse apenas uma parte finita e falível e cuja verdadeira natureza ele só pudesse descobrir mediante laboriosa investigação" (IFM, 39).

1.1.2 Descartes e a Metafísica

Anteriormente tentamos esclarecer a concepção de substância extensa em Descartes como sendo a pedra de toque para a sua concepção cosmológica da ciência. Vimos que todo universo composto de matéria possui sua autêntica natureza em Deus e dele se deduz as leis da física de maneira geométrica, sendo que todas idéias daí derivadas são por assim dizer, para Descartes, claras e distintas.

Agora partiremos para o estabelecimento da substância pensante que, por sua vez, é a pedra de toque da metafísica de Descartes.

Descartes inicia todo seu filosofar pela dúvida, pela dúvida orientada ou direcionada pelo método, enfim, pela DUVIDA METÓDICA. Diz Descartes que o seu propósito é:

"(...) desfazer-me de todas opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências (...).

Ora, não será necessário, para alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a cabo (...) o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas." (Meditações, 85)

A atitude de Descartes tinha sua razão de ser. O Renascimento deixará para a filosofia uma situação bastante incômoda: todo nosso conhecimento não possui nenhuma estrutura segura. Tudo que afirmamos, mais cedo ou mais tarde, aparecem contrários à nossa razão. A atitude de Descartes, em princípio, é a de um cético que suspende todos os seus juízos e coloca-os em cheque. Porém, sua meta é bastante racional: estabelecer princípios seguros e absolutos para a razão. Esses princípios seriam norteadores de todo o conhecimento objetivo. A objetividade da razão é em Descartes algo determinado e determinador, reflexo da certeza e da segurança que todo conhecimento que se diga científico, deveria ter. As idéias claras e distintas advém deste conceito de objetividade.

Desta atitude cartesiana perante a razão, provém o problema fundamental da teoria do conhecimento: como posso EU conhecer ou ter certeza das coisas que afirmo conhecer? Se trata aqui de se estabelecer o conhecimento humano como uma árvore que, tem a física como tronco e a metafísica como raiz.

Ora, apartir deste problema do conhecimento, faz com que Descartes, de sua dúvida metódica se volte para dentro de si mesmo. Mas todo este procedimento é coordenado pela razão. Portanto, haverá, por assim dizer, um método de valor universal para que tudo se desenrole do jeito que está se desenrolando. É sobre este método que queremos dizer alguma coisa a partir de agora.

O método de Descartes justifica, sobretudo, a sua atitude de interiorização, de recolhimento em si mesmo e, por conseguinte, sua abertura para a realidade exterior. Sendo assim, Descartes define como Método o conjunto de

"regras certas e fáceis que, por quem quer que sejam exatamente observadas, lhe tornam impossível tomar o falso pelo verdadeiro e, sem nenhum esforço mental inútil, antes aumentando sempre gradualmente a ciência, o conduzirão ao conhecimento de tudo o que ele será capaz de conhecer" (Discurso do Método). Esse aumento gradual de que fala Descartes em sua definição de Método, espelha sua atitude de contela e desconfiança para, por fim, alcançar a certeza incontestável.

Pois bem, quatro são as regras de direção do espírito metódico: a) a regra da evidência

b) a regra da análise

c) a regra da síntese

d) a regra da enumeração

Vejamos pois, cada uma: pela regra da evidência Descartes procura estabelecer que jamais podemos aceitar algo como verdadeiro se não pudessemos reconhecê-lo como evidente. Reconhecer como evidente é reconhecer segundo a luz natural da razão, é reconhecê-lo pela INTUIÇÃO, chave de toda boa razão. Oposta a noção de evidência é a de conjectura, que é em Descartes, aquilo que não nos dá a verdade de modo IMEDIATO ao espírito, mas tal verdade é MEDIADA por outras circunstâncias para alcançar o espírito. Daí se deduz que a evidência é aquilo que se dá imediatamente ao espírito, sem a interferência de outros fatores. O conceito, por assim dizer, se torna cristalino, transparente para a razão. Daí se deriva a CLAREZA enquanto tal. A DISTINÇÃO é um outro momento que consiste na separação do conceito imediatamente captado de outros conceitos adjacentes. A distinção é um processo de discernimento de conceitos ou idéias e a clareza é propriamente dita como a apresentação da idéia para a mente. Diz Descartes a respeito desta primeira regra:

"O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse EVIDENTEMENTE como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida." (DM,37)

Em segundo lugar, pela regra da análise temos um processo que consiste em dividir cada uma de nossas dificuldades, segmentando nosso problema central no maior número possível e necessário de partes para poder chegar a uma conclusão.

"A análise designa aqui o método que consiste em supor conhecida a linha desconhecida, em estabelecer as relações que a ligam a grandezas conhecidas, até que se possa constituí-la a partir destas relações." (DM, nota 20)

Segundo Descartes a etapa da análise pode ser definida como "... o de dividir (no sentido de decompor até os elementos mais simples cuja combinação engendrará a solução) cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas PARCELAS quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las" (DM, 37-8)

Em terceiro lugar, temos o momento da síntese que envolve um reagrupamento das idéias analisadas em uma nova ordem . Descartes assim fala sobre essa terceira etapa do seu método geométrico:

"O terceiro, o de conduzir por ORDEM os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros." (DM, 38)

Em quarto lugar, temos a etapa da enumeração, que, segundo Descartes, pode ser assim definida:

"E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir".(DM,38)

Em conclusão: com este método geométrico Descartes racionaliza a sua dúvida metódica, diferente dos céticos que a sua dúvida e encerteza é motivo de suspensão do juízo, pois constatam que a razão lhe escapa.

A dúvida metódica faz com que Descartes se recolha em si mesmo. É o momento do "cógito, ergo sum". A segurança e a certeza não está fora de mim, portanto, devo procurar em meu interior. Está na hora de definir, em oposição a RÉS EXTENSA, A RÉS CÓGITA, isto é, a substância pensante, como centro da metafísica de Descartes.

Pois bem, por substância, como já sabemos, entendemos aquilo que existe independentemente de qualquer outra coisa. Ora, a substância pensante se impõem na medida em que, uma vez efetuada a dúvida metódica, ocorre a constatação: se estou duvidando de tudo, uma coisa porém não posso duvidar, a de que estou PENSANDO, porque para duvidar eu tenho que pensar. Por acaso poderia existir alguém que duvidasse de tudo e até mesmo que estivesse a pensar? Seria contraditório. Se cumpre em Descartes o princípio da lógica que diz: posso pensar em tudo quizer, desde que, não entre em contradição comigo mesmo.

Dessa forma, Descartes introduz na teoria do conhecimento o sujeito pensante: a epistemologia do sujeito cognoscente.

"A teoria do conhecimento subjetivo é muito antiga: mas torna-se explícita com Descartes: "Conhecer" é uma atividade e pressupõe A EXISTÊNCIA DE UM SUJEITO CONHECEDOR. É o ser subjetivo quem conhece." (CO,77)

Vimos que a proposição Penso, logo existo (ou até mesmo, Duvido de tudo, logo existo) é a única proposição absolutamente VERDADEIRA porque a própria dúvida a confirma. Ora, devemos distinguir aqui, na filosofia cartesiana, as verdades necessárias das verdades contingentes. A verdade necessária é aquela que pode ser conhecida pela luz natural da razão, pela evidência, pela intuição. A verdade necessária, portanto, nunca será falsa. Ao contrário, a verdade contingente pode (possibilidade) ser falsa. Portanto, não é que necessariamente seja FALSA. Porém, somente as verdades necessárias estarão vinculadas ao cógito, a substância pensante, enquanto que as verdades contingentes estão representadas pela realidade exterior ao cógito. O que leva Descartes de dentro do cógito para a realidade exterior, é a noção de Deus. Temos assim,

Mas se as verdades do cógito são necessárias por que Descartes tinha que voltar-se para fora do cógito? Descartes precisa abandonar o solipcismo e demonstrar geométricamente a existência da realidade exterior. Já tivemos alguma idéia de como ele o faz, mas vejamos:

O ponto central da obra de Descartes é a sua explicação da passagem do cógito (substância pensante) para a realidade exterior (substância extensa). Essa passagem ocorre pelo fato de que EXISTE DEUS. Mas como Descartes prova a existência de Deus? Aqui Descartes é pouco original. Descartes se volta para os Escolásticos. Especificamente falando, é em Santo Anselmo de Aosta que Descartes encontrará a prova ontológica da existência de Deus. Qual é esse argumento ontológico da existência de Deus?

Ora, segundo Anselmo, não é possível conceber um triângulo que não tenha ângulos internos iguais a dois retos, logo, também não é possível conceber Deus como não existente. Essa é exatamente a lógica de Descartes! Como pode ser que o ser soberanamente perfeito possa ser privado daquela perfeição que é a EXISTÊNCIA? A existência está para Deus assim como a propriedade do triângulo está para o triângulo.

Perante essa situação dirá Pascal, o Deus de Descartes não tem nada a ver com o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacob, com o Deus Cristão; é, simplesmente autor de verdades geométricas e da ordem do mundo. (Pensamento, 556) Pascal acha isso lastimável. Descartes dizia é bom que seja assim!

Garantida a existência de Deus, Descartes pode provar agora a existência da realidade exterior ao cógito. E, isso ele o faz, como vimos, aplicando novamente o seu método geométrico.

"Ainda que a idéia de substância esteja em mim, pelo fato mesmo de que sou substância, não poderia ter a idéia de uma substância infinita, posto que sou finito, se ela não procedesse de outra substância, realmente infinita." (MED.III)

O método geométrico é importantíssimo neste momento porque senão poder-se-ia simplesmente dizer que Deus é produto direto do Cógito (da substância pensante). O resultado seria que Descartes não conseguiria sair do Cógito. Morreria no solipcismo!

Portanto, assim como não é possível que algo infinito esteja contido no que é finito, assim também EU (substância pensante) e finito não posso conter Deus em mim, pois ele é infinito.

Mas se Deus estabelece o vículo entre EU e o mundo exterior, como poderia eu saber que ele não está me enganando? Diz Descartes:

"Pois, primeiramente, reconheço que é impossível que ele me engane jamais, posto que em toda fraude e embuste se encontra algum modo de imperfeição . E, conquanto pareça que poder enganar seja um sinal de sutileza ou de poder, todavia querer enganar testemunha indubitavelmente fraqueza ou malícia. E, portanto, isso não se pode encontrar em Deus." (MED. IV, 115)

Ora, se por um lado, Deus não me engana porque ele é perfeito e, seria uma imperfeição dele querer enganar-me, por outro lado, não estaria EU me enganando em relação a Deus?

Se devo reconhecer que eu sou sujeito ao erro e, que, o erro é um juízo falso com conhecimento, mais do que isso, o erro é "uma privação de algum conhecimento que parece que eu deveria possuir" (MED. IV, 116). Uma privação que significa não ter acesso ao conhecimento, não estaria EU me enganando em relação a Deus?

Eu erro porque a minha VONTADE é infinita e minha razão finita. Portanto, sempre terei uma tendência a generalizar demasiadamente os meus juizos. Evitarei o erro quando "todas as vezes em que retenho minha vontade nos limites de meu conhecimento, que ela não julga senão das coisas que lhe são clara e distintamente representadas pelo entendimento, não é possível enganar-me." O Erro é produto do fato de que Deus não me deu o poder infinito de discernir o verdadeiro do falso. Parece que Descartes não consegue responder a questão acima... Se Deus aparece como uma figura que me arranca o cógito e me transporta para a realidade externa, não poderia EU estar enganado em relação a Deus? Ele não me engana, mas eu posso estar enganado em relação a ele. Ora, como preciso dele para sair do cógito e admitir a realidade exterior, logo, preciso ter clara e distintamente certo a idéia de que eu não esteja me enganando quanto a sua natureza. Isso não fica "Claro e distinto" em Descartes. O fato de desculpar Deus do mal existente em mim, não responde a problemática exposta.

Toda essa problemática gera em torno de explicar a vinculação substância pensante e substância extensa. O problema alcança dimensões extremadas quando Descartes precisa responder sobre a INTERAÇÃO entre corpo e alma. Em primeiro lugar é preciso separar que o corpo é distinto da alma por duas razões que se encontram nos parágrafos 17 e 18 da MEDITAÇÃO VI .

A primeira razão da distinção entre corpo e alma se encontra no fato de que EU sou uma substância pensante e inextensa e que todo corpo é uma substância extensa e não pensante, e que a minha alma PODE existir sem o meu corpo. Em segundo lugar, as faculdades como as de imaginar e sentir são próprias da ALMA, não podem ser concebidas sem EU, não estão situadas portanto, no corpo.

Nos paragrafos de 21 a 29 da MEDITAÇÃO VI Descartes procura, sem descanso, justificar aquilo que se chamaria uma inter-relação entre corpo e alma. É aqui que reside o problema:

"Mas a resposta cartesiana levanta o enorme problema de como explicar a inter-relação destas entidades diversas. Se cada uma existe em independência absoluta com relação à outra, como os movimentos das coisas dotadas de extensão produzem sensações distituídas de extensão e como ocorre que as concepções claras ou as categorias da mente distituídas de extensão sejam válidas perante a RES EXTENSA?" (BMCM, 96) Mais enfaticamente:

"Como é que o que não tem extensão pode conhecer um universo dotado de extensão e, conhecendo-o alcançar propósitos nele?" (BMCM, 96)

Descartes se vê em dificuldades de responder a essa questão porque o seu interesse não é mais TELEOLÓGICO (procura o porquê das coisas), mas o seu interesse é o de responder COMO ocorre que a matéria extensa está em relação com o pensamento ou a mente não-extensa. Deus que será o elo de ligação entre a mente e corpo, aparece não como uma resposta final, mas como uma resposta presente, do momento. Deus não é o porquê,mas sim o COMO da ligação entre substância pensante e substância extensa, entre corpo e alma. Essa é a diferença entre Descartes e o pensamento escolástico.

Mas, Deus existe? Descartes tenta mostrar que sim. Há duas provas distintas: uma ontológica e outra cosmológica. O argumento cosmológico é o seguinte: Se sou um ser IMPERFEITO porque eu erro, então, como posso ter a idéia de um SER PERFEITO em mim? Não é possível que a PERFEIÇÃO esteja contida na imperfeição. Portanto, a perfeição só pode ter sido causada, colocada em mim pelo próprio ser perfeito. Deus existe.

A prova ontológica é a seguinte: Se podemos enumerar todas as perfeições do ser perfeito - isto é, apontar sua essência - logo, todas essas perfeições indicarão a existência desse ser perfeito. Deus existe. A existência está contida na essência.

Em conclusão: a resposta de Descartes é insuficiente. "A concepção cartesiana do espírito tem-se afigurado óbvia e irresistível aos filósofos ao longo dos séculos. Caricaturada por G. Ryle em THE CONCEPT OF MIND (1949) como a concepção do "FANTASMA DA MÁQUINA", ela representa uma ilusão profunda, produzida pela quase totalidade do pensamento epistemológico." (IFM, 44) Essa visão é derivada da oposição que Hobbes fez a Descartes.

Hobbes se opõe duramente ao dualismo cartesiano, encarando-o como injustificável. Como Hobbes se opõe a Descartes? Ora, para Hobbes toda atividade e todo movimento constitui-se em MOVIMENTO. O pensamento é uma atividade em todas suas formas (dedutivo ou indutivo) e, o pensamento é um movimento em um organismo animal. Neste sentido, não há diferença entre substância extensa e substância pensante. E o método geométrico é, para Hobbes, a "ciência do movimento simples", a própria geometria é uma mecânica.

Quanto ao vínculo entre substância extensa e substância pensante que em Descartes é Deus, responde Hobbes: uma idéia é sempre uma imagem. Uma imagem faz sempre referência a corpos. Ora, Deus não é um corpo. Portanto, não fazemos imagem nenhuma dele. Não temos idéia alguma do que seja Deus. Queremos muitas vezes conceber o inconcebível. Deus é produto de uma pesquisa racional efetuada pelo homem. Esse objeto Deus é apenas uma explicação da causa primeira das coisas. Deus é um NOME que damos para aquelas coisas que carecem de explicação empírica, assim como um triângulo é um NOME dado a uma determinada forma observada na natureza. Os nomes existem em função dos objetos. Processos mentais são atividades e, atividades são movimentos. Movimentos só ocorrem em corpos. Logo, não existem "substâncias extensas", como queria Descartes. Esse raciocínio é justamente assumido por materialistas como G.Ryle.

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